A Indústria 5.0 pretende ser a concretização do sonho de ter homens e máquinas a trabalhar em perfeita simbiose, e começa a dar os primeiros passos. Em Portugal, a ainda elevada falta de maturidade digital no setor coloca outros desafios que é preciso ultrapassar
A disrupção das cadeias de abastecimento e de logística durante os dois anos de pandemia deixarão certamente lições para a História da União Europeia (UE). Neste período, a Europa dos 27 ganhou consciência da dependência criada, ao longo de décadas, com parceiros económicos como a China ou Taiwan, e questiona-se agora sobre as decisões antigas de encerrar grande parte da indústria europeia, em nome do preço baixo e da quantidade de produção garantida pelos países asiáticos. Hoje, regressa em força o debate sobre a re-industrialização do ‘velho continente’ que passou a ser de novo encarada como fator-chave para a competitividade global, mas também como garantia de abastecimento aos países da UE. Mas, esta alteração estratégica constitui um desafio complexo e impõe um conjunto de mudanças a que a indústria de todos os países-membros terá de adaptar-se. Atualmente, o setor industrial representa cerca de 20% do PIB da União Europeia, garante um elevado número de empregos e começa a ser olhado como essencial para o crescimento económico do continente, mas igualmente como resposta aos desafios das alterações climáticas, da transformação digital e da força de trabalho. Antes da pandemia, e das disrupções que obrigaram as organizações de todos os setores a acelerar a sua transformação digital, já assistíamos à introdução da tecnologia em muitos chãos de fábrica, e o conceito de Indústria 4.0 já apontava tendências e caminhos que era preciso percorrer, em nome da competitividade e do sucesso do negócio. Ainda assim, o país caminhava em diferentes velocidades, e com manifestas diferenças, desde a visão estratégica, ao planeamento ou ao nível de investimento. Dois anos depois, o fosso entre os early adopters e os mais relutantes à mudança é menor, mas o nível de maturidade digital, especialmente nas PME, ainda é genericamente reduzido, impedindo muitas pequenas indústrias de dar o salto tecnológico ao qual não têm como escapar. A nível europeu, o cenário de desenvolvimento da Indústria 4.0 a diferentes velocidades é igualmente uma realidade. Ainda assim, o ‘velho continente’ acompanha a tendência global de crescimento num mercado que deverá valer este ano cerca de 110 mil milhões de dólares, segundo o estudo Global Industry Analysts. Dentro de quatro anos, refere a mesma fonte, este valor deverá duplicar, graças à aceleração dos investimentos em ferramentas tecnológicas que ajudarão a digitalizar cada vez mais o chão de fábrica que, gradualmente, deverá fazer parte de um ecossistema fabril, completamente conectado e sensorizado. Tecnologias como a Inteligência Artificial (IA), a impressão 3D, a realidade virtual (VR) e a realidade aumentada (AR), ou a Internet das Coisas (IoT) farão parte do dia a dia de qualquer indústria que não queira perder o comboio da competitividade. Mas, regressemos ao Portugal a várias velocidades. O cenário apurado pela IDC na edição deste ano do Futurescape aponta para uma prioridade de investimento em inovação e transformação digital, por parte de gestores e empresários de diferentes setores, até 2025. De acordo com a pesquisa da IDC, estas áreas representarão metade de todo o investimento feito em tecnologias da informação. Uma perspetiva otimista, mas que poderá não chegar a todos os players da indústria nacional. Durante o COTEC Innovation Summit, que decorreu há alguns meses em Aveiro, entre os diferentes painéis e partilha de experiências ficou evidente que a falta de literacia digital continua a ser um entrave em algumas organizações. Estas empresas, maioritariamente de pequena dimensão – e que representam a larga maioria da indústria transformadora -, são frequentemente mais cautelosas a enfrentar a mudança e nem sempre dispõem da capacidade financeira para concretizar investimentos sem apoio. “Este é também o papel das Associações Empresariais como a COTEC e outras”, disse na altura o diretor- -geral da COTEC Portugal. “O crescimento da economia portuguesa só é possível através do investimento em unidades produtivas de bens e serviços transacionáveis, o que pressupõe o acompanhamento pelo nosso país do processo europeu de re-industrialização - um novo paradigma de produção industrial com incorporação de serviços de valor acrescentado, inovação e tecnologia”, pode ler-se no Programa Estratégico para a Valorização da Indústria Portuguesa - Portugal Industrial 5.0 – desenvolvido pela Associação Empresarial Portuguesa (AEP), que assumiu como missão contribuir para a re-industrialização nacional, uma mudança assente na sustentabilidade e na valorização das competências e do emprego no setor. Desafios que são também os pilares que sustentam a próxima (r)evolução industrial e o conceito de Indústria 5.0. Para ajudar as empresas industriais a dar este passo rumo ao digital, a AEP disponibiliza um conjunto de programas de capacitação que visam contribuir para diluir o fosso entre indústrias. Capacitação tecnológica (Clusters, Inovação, I&DT e aposta no Design), capacitação para as competências (Formação e (Re)qualificação), capacitação para a eficiência empresarial (Produtividade e Competitividade), capacitação financeira (Capitalização e Diversificação das Fontes), e capacitação das entidades associativas de apoio à indústria permitirão apoiar as empresas nas diferentes vertentes, todas elas essenciais no caminho de transformação que serão obrigadas a percorrer. Busca pela excelência incentiva mudançaNão obstante o longo caminho que a indústria nacional ainda tem para percorrer, como um todo, não faltam exemplos de sucesso em que visão estratégica, combinada com uma busca pela excelência, resultaram em projetos que hoje refletem a criação de valor. Na Simoldes Plásticos, empresa com forte presença no mercado dos componentes para a indústria automóvel, a transformação digital começou quando “ainda nem se falava nisso”, recorda Jaime Sá, administrador. Em 2010, conta à IT Insight, “começámos a concentrar-nos na melhoria dos processos de fabrico e na excelência da produção”. Este deve ser, acredita, o primeiro passo para todas as empresas. “E esta fase de repensar o negócio tem que estar constantemente em cima da mesa”, reforça. O resultado imediato desta primeira fase de transformação foi um volume de vendas que triplicou em seis anos, e que permitiu à empresa enfrentar as adversidades provocadas pelas disrupções logísticas no período pandémico. O reforço digital, a par com o foco e a perseverança, ajudou a manter a empresa em funcionamento, mesmo sem as encomendas do setor automóvel. “A área de inovação e de desenvolvimento de produto nunca parou, o que permitiu avançar com outros projetos”. O hub digital, que concentra num só local todos os projetos de mudança e de inovação, e todas as competências técnicas, é disso exemplo. Hoje, a Simoldes Plásticos tem todas as fábricas digitalizadas e conectadas e, nos próximos dois anos “vamos começar a trabalhar na indústria 5.0, trazendo a inteligência artificial para o chão de fábrica e fomentando uma melhor colaboração entre pessoas e robôs”, assume o administrador. Contudo, e apesar da digitalização dos processos iniciada há 12 anos, foi em 2019 que a Simoldes iniciou a viagem transformadora no chão de fábrica. “A informação relacionada com o processo de produção foi toda digitalizada, e as máquinas conectadas para que esta informação esteja integrada e disponível, permitindo uma resposta mais rápida a qualquer problema”, revela Jaime Sá. O próximo passo será trazer a inteligência artificial para o chão de fábrica, com vista a interpretar os dados para que permitam identificar os focos estratégicos e os caminhos a seguir. “Um processo de transformação digital, para ser bem-sucedido, nunca estará concluído”, salienta o administrador da Simoldes. Em fase experimental está igualmente o projeto Blockchain, que pressupõe a ligação entre a Simoldes e os OEM com quem trabalha, com o objetivo de criar visibilidade na cadeia de abastecimento. “Os clientes podem, com esta ferramenta, ter uma visão geral da cadeia de abastecimento, e saber exatamente o que está disponível em cada momento”, explica Jaime Sá. Com esta tecnologia, qualquer produto fornecido tem uma etiqueta que revela onde foi produzido, com que processos e especificações, e dados sobre a qualidade. Inovação e tecnologia de mãos dadas na indústriaSempre que abrir um pacote de sumo Compal ou uma garrafa de Sumol, fique sabendo que o processo de fabrico por detrás destes produtos é totalmente apoiado por tecnologias como IoT, IA, AR, que utilizam a rede 5G para a conetividade esteja sempre garantida, sem falhas. Neste projeto, que apresenta a unidade fabril de Almeirim como a primeira fábrica 5G, a rede móvel funciona como catalisador de um conjunto de tecnologias. Apesar de, na opinião de João Ricardo Moreira, esta tecnologia de comunicação “valer por si só”, as suas capacidades tornam-se exponenciais quando combinadas com as restantes tecnologias. O administrador da NOS, parceira da SUMOL+COMPAL apresentou o projeto durante o COTEC Innovation Summit já este ano, depois da fábrica 5G ter sido oficialmente apresentada em novembro do ano passado. “O 5G traz consigo a capacidade de transformar processos industriais e materializar cadeias logísticas mais otimizadas, eficientes e seguras, elevando a eficiência e produtividade das empresas a novos patamares”. O processo de transformação digital da SUMOL+COMPAL teve início com a sensorização de uma linha de enchimento, na qual a informação foi integrada com inteligência artificial para que decisões mais rápidas e eficientes possam ser tomadas sobre o processo de produção. Adicionalmente, e para facilitar a assistência remota, foi introduzido um sistema similar aos utilizados nas áreas da saúde ou da aeronáutica capaz de compreender os outputs da máquina e de tomar decisões em tempo real. Com este sistema, pessoal técnico e não técnico consegue, através de realidade aumentada e da utilização de smart glasses em conjunto com um smartphone, facilitar o diagnóstico de problemas e diminuir o tempo de paragem das máquinas. As soluções permitem ainda economizar tempo e recursos com a deslocação física de fornecedores de suporte técnico. “A SUMOL+COMPAL continuará a investir em tecnologia nas suas operações, para responder cada vez melhor aos desafios do mercado, ou seja, continuar a desenvolver produtos inovadores e aumentar a eficiência e a rapidez de resposta nas operações do dia-a-dia”, garante o administrador da marca, Jaime Alves Cardoso. O objetivo da SUMOL+COMPAL, em parceria com a NOS, passa ainda por, entre três e cinco anos, dotar a fábrica de sistemas que permitam extrair a informação necessária à otimização da operação, bem como fazer uma gestão dos recursos humanos alocados com maior eficiência. Cibersegurança é indispensávelÀ medida que, na indústria 4.0, o chão de fábrica começa a estar conectado, o perímetro de segurança deixa de estar entre quatro paredes para abrir a porta ao mundo. A consciência desta nova fragilidade, que comporta desafios acrescidos já preocupa os gestores da indústria, especialmente numa altura em que se somam ataques informáticos a empresas dos mais diversos setores. Uma paragem de horas num chão de fábrica comporta um prejuízo tão, ou mais, elevado do que em organizações de outros setores. A integração das cadeias de valor, que ligam parceiros e fornecedores em sistemas digitais, está igualmente a aumentar as preocupações dos empresários da indústria que, por um lado, se veem obrigados a adotar determinadas tecnologias que garantam a interoperabilidade dos sistemas e que, por outro, começam a perceber que a cibersegurança já não é apenas uma peça da engrenagem do negócio da responsabilidade do IT, mas que deve ser transversal a toda a organização. “A cibersegurança é fundamental em todos os sistemas digitais”, diz Jaime Sá, destacando a necessidade de que todos os players da cadeia de abastecimento estejam alinhados em termos de aplicações e de normativos de segurança. Para o administrador da Simoldes, é fundamental que os gestores definam uma estratégia de cibersegurança global, que deve assentar na criação de processos seguros dentro da fábrica, garantindo que se fecham todas as possíveis ‘portas’ de entrada. Mas, à semelhança de outros setores, o reforço da cibersegurança exige uma preparação adicional dos recursos humanos. A par com a formação em novas competências, que permitam operar com todo um sistema mais digital e com máquinas capazes, em alguns casos, de complementar o trabalho humano, libertando-o para tarefas de valor acrescentado, a literacia em segurança deve ser igualmente uma prioridade para os empresários. Próxima paragem: Indústria 5.0Hiper-customização e otimização da eficiência humana, sustentabilidade e circularidade serão os determinantes da próxima revolução industrial que permitirá dar continuidade e aprofundar a transformação digital iniciada na indústria 4.0. No fundo, a indústria 5.0 pretende concretizar o sonho de ter homens e máquinas a trabalhar em perfeita simbiose, e começa a dar os primeiros passos na Europa. Em Portugal, apesar de algumas indústrias estarem atentas à mudança e de já introduzirem algumas transformações neste sentido, o país ainda tem um longo caminho a percorrer. Mas, o que diferencia a indústria 5.0? Trata-se, essencialmente, da evolução do conceito indústria 4.0, com um foco adicional na sustentabilidade e na economia circular, em que a otimização de recursos e a conservação do meio ambiente ganha protagonismo. As pessoas passam a estar no centro das estratégias industriais, tirando partido das tecnologias exponenciais, que são pensadas e implementadas com vista a responder às suas necessidades. A tecnologia será aqui um fator de capacitação e de integração de recursos humanos, e permitirá um trabalho eficiente, desenvolvido lado a lado com robôs colaborativos, também conhecidos por ‘cobots’. Na indústria 5.0 o ser humano deverá estar no centro – o que permitirá promover talento e empoderá- lo –, sendo a resiliência (através de tecnologias flexíveis e adaptáveis) um fator-chave para o sucesso das organizações, e a sustentabilidade uma exigência de negócio. No chão de fábrica, robôs autónomos trabalharão em cooperação estreita com os humanos, as cadeias de abastecimento serão ainda mais ‘inteligentes’ e de proximidade, e os produtos hiper-personalizados. Com a massificação do 5G no chão de fábrica, tecnologias como metaverso, drones ou blockchain irão complementar as capacidades de outras como IA, IoT ou impressão 3D. O objetivo final será oferecer uma experiência cada vez mais personalizada. A aposta da União Europeia, através de um conjunto de programas comunitários, na re-industrialização passa também pela dinamização desta evolução para a indústria 5.0. Na perspetiva da UE, esta transformação da indústria permitirá aos players menos avançados digitalmente, dar um salto qualitativo muito grande. Trata-se de incentivar a inclusão de tecnologias no chão de fábrica – o mote de mudança na indústria 4.0 – e de promover a evolução natural pressuposta no novo conceito. O objetivo será, a médio prazo, contar com uma indústria europeia que garanta eficiência no processo de produção, reduzindo custos e tornando o negócio economicamente mais sustentável, tornar o setor mais competitivo e ‘sexy’ como forma de atrair e de reter talento, capacitando funcionários e reintegrando- os na indústria em simbiose com a tecnologia e sistemas autónomos. Segundo a pesquisa ‘Industry 5.0: A Survey on Enabling Technologies and Potential Applications’, na indústria 5.0 os empregos serão mais qualificados e, ao contrário do que muitos auguram, os robôs não vão acabar com os empregos no setor industrial. Pelo contrário, o mesmo estudo indica que operadores cada vez mais especializados serão os responsáveis por guiar os robôs, assegurando uma produção customizada em massa. Por outro lado, a indústria 5.0 assenta em pressupostos de sustentabilidade, usando a tecnologia para fazer a transformação necessária. Por exemplo, a utilização de análises preditivas e inteligência artificial permitirá criar modelos que contribuem para a tomada de decisões mais precisas e menos instáveis. No fundo, o conceito inicialmente defendido por Yoko Ishikura, consultora do Fórum Económico Mundial, membro executivo do conselho de Ciência, Tecnologia e Inovação do Governo japonês, não é mais do que colocar a indústria ao serviço da humanidade, satisfazendo as suas necessidades, e deixando as pessoas mais libertas para tirar maior partido da vida. O negócio continua a ter que ser rentável, garantindo a sustentabilidade económica, social e ambiental. |