Reconhecido internacionalmente como smart city, o município de Cascais tem vindo há já vários anos a implementar medidas para fomentar o empreendedorismo, a inovação tecnológica e a otimização dos serviços públicos
Cascais tem vindo a ser reconhecido nacional e internacionalmente como referência enquanto smart city, destacando-se pela inovação, empreendedorismo e envolvimento dos cidadãos. Marco Espinheira, Diretor do Futuro da Câmara Municipal de Cascais, detalha a visão estratégica do Município, bem como as as tendências e desafios que estão – e continuarão – a afetar as cidades. O que é que envolve o cargo de Diretor do Futuro? Como é que surgiu? Marco Espinheira: O cargo advém da forma como a câmara está organizada, que é um pouco diferente das outras câmaras. O nosso Presidente – que funciona um pouco como chairman, com representação fiscal e externa – delega todos os poderes executivos ao Vice-Presidente, que funciona de forma equivalente a um CEO, com os nossos vereadores a constituir o equivalente a um board. Abaixo disto, a Câmara está organizada em quatro grandes áreas, cada uma com o seu Diretor-Geral, que funcionam tanto a nível estratégico como operacional. Estas áreas são Território, Pessoas, Presente e Futuro. O Território trata de temas como o ambiente, o tráfego e a manutenção; a área das Pessoas tem a educação, o apoio social e a saúde; o Presente tem o quotidiano da Câmara – recursos humanos, administração, etc – e o Futuro tem, no fundo, o resto. Enquanto Diretor do Futuro, trato de temas como a comunicação, tecnologias de informação, inovação, smart cities, cultura, turismo, cidadania, etc.. Mais do que isto, esta área tem a função de coordenar e organizar todas as outras áreas na perspetiva do desenvolvimento, daquelas que serão as principais tendências mundiais com potencial para afetar a situação e posicionamento do município. A coordenação destes processos influencia também todas as outras áreas, pelo que o Futuro acaba por agir como "cola". Quais diria que são, então, estas principais tendências? O grande tema do futuro para os municípios é a densidade populacional. Quer do ponto de vista da organização da sociedade, quer do ponto de vista da otimização de recursos, as cidades vão continuar a tornar-se cada vez maiores. Isto vem criar desafios e oportunidades. As grandes tendências, precisamente por causa disto – da coordenação de um grande número de pessoas dentro do mesmo espaço – é obviamente a questão da tecnologia em rede. Tudo o que é IoT, tudo o que chamamos smart cities – que o são por serem conectadas – vai ditar uma grande evolução no que diz respeito tanto à qualidade de serviços como à organização e coordenação. Outra tendência – que talvez não seja tão global, mas é um grande foco para Cascais – é a cidadania. As pessoas podem e devem participar ativamente na definição de políticas que dizem respeito às suas cidades e isso é sem dúvida fundamental. E depois há o ambiente, que é a questão mais premente e vai redefinir não só as cidades, como também muitos setores no futuro próximo. Tem de ter uma resposta imediata, sem vacilar, e as cidades serão fundamentais nisso. Acredito que nos próximos anos vamos ver um maior investimento, que vai ultrapassar coisas como o espaço e até o próprio armamento, com todos os setores públicos e privados da sociedade a focar esforços nesta área.
"Nunca vamos conseguir criar emprego a partir do mundo administrativo. O que nós fazemos é criar as condições que achamos que as pessoas e as empresas procuram para desenvolver os seus negócios"
Cascais tem apostado muito no empreendedorismo e educação – incluindo a atração de iniciativas como a European Innovation Academy e a SingularityU Portugal. Como é que isto se tem refletido na criação de emprego? Fala-se muitas vezes da criação de emprego e empreendedorismo. Isto não cabe às cidades: cabe, e sempre caberá, às pessoas que estão dispostas a tomar riscos, a apostar e a tomar iniciativa. O que cabe à cidade é criar as condições para que isso aconteça. Nunca vamos conseguir criar emprego a partir do mundo administrativo. O que nós fazemos é criar as condições que achamos que as pessoas e as empresas procuram para desenvolver os seus negócios. Só podemos esperar é que as empresas, quando tiverem necessidade e vontade de avançar com o seu negócio, o façam em Cascais, porque determinaram que é o município que lhes oferece as melhores condições. E isto aplica-se a qualquer cidade. A aposta na educação é de facto imensa, mais estrutural do que propriamente em pequenos focos temporários, também importantes, como a EIA. O facto de termos conseguido trazer a Nova para Cascais, bem como outras duas universidades nas áreas do turismo e da fisioterapia, resultou na criação de talentos para o território, os quais podem então ser aproveitados por empreendedores e empresas. O envolvimento da câmara na inovação passa pela criação de um conjunto de condições que permitem que as pessoas se organizem e acedam à informação necessária com maior facilidade, de forma a desenvolverem as suas ideias. Em iniciativas como a Big Smart Cities e a própria área de empreendedorismo da Nova, acho que Cascais tem um papel importantíssimo, especialmente na área das tecnologias aplicadas à sociedade e no que toca a fomentar pilotos e provas de conceito, a ir a jogo. Isto no sentido em que, se uma empresa tem uma solução que acredita que pode, por exemplo, reduzir os custos de iluminação em 20%, vamos tentar criar condições para a empresa criar um caso de estudo que lhe permita vender a sua solução no mercado. E aí sim, temos um papel muito importante no que toca à inovação, que é ajudar a desenvolver e ser parceiro no desenvolvimento destes conceitos. Qual é então, mais concretamente, a estratégia de Cascais para fomentar a inovação? Temos duas áreas importantes no tópico da inovação. Por um lado, como referi, a criação das condições iniciais dessa inovação, servindo muitas vezes como primeiro cliente, ou como living lab. Depois, temos uma segunda área na qual a inovação é muito visível e muito direta: o que as pessoas chamam de smart cities. Nesta área, a tecnologia é aplicada diretamente na qualidade dos serviços prestados pela Câmara. Por este motivo, é uma área muito mais visível. Quer numa área quer noutra, Cascais sempre teve como foco a digitalização e a virtualização da câmara, pelo que fazemos um grande esforço para explorar, sermos pioneiros, e tentarmos perceber como é que a tecnologia nos pode ajudar a fazer melhor com menos. Contido, nada disto funciona sem um campeão interno, e neste caso deve-se muito ao nosso Vice-Presidente Miguel Pinto Luz, o único político que conheço formado em robótica e que tem, por isso, a capacidade de abraçar e dar força a este ADN de inovação. "O atual enquadramento legal é absolutamente contrário à inovação, à capacidade criativa das organizações"
Quais foram os principais desafios que Cascais verificou neste processo de digitalização? Não foram; continuam a ser e continuarão a ser no futuro. O primeiro é o colete de forças no qual está envolvida a administração pública; o enquadramento legal – quer de investimento, quer de despesa, quer de organização, quer de jurisdição – é absolutamente contrário à inovação, à capacidade criativa das organizações. Isto, diria, tem de mudar o mais rapidamente possível, e quanto mais depressa os países mudarem mais rapidamente darão um maior salto competitivo na área do serviço ao cidadão Em segundo lugar, a questão dos recursos humanos. Nas câmaras estes recursos são escassos; as habilitações disponíveis são completamente desadequadas aos desafios a abordar e não temos a possibilidade de ir buscar talento nas áreas em que precisamos. O terceiro desafio é a questão da integração: como é que se coordena e integra os sistemas legacy com as novas tecnologias para conseguir o que é necessário neste momento. Como é que os nossos sistemas – que são fechados e proprietários, específicos e compartimentados – falam uns com os outros? A capacidade de quebrar estas barreiras, de os pôr a falar uns com os outros, é a base de tudo isto. Fazer com que a infraestrutura passe a olhar para a informação e não para a operação – de determinada equipa, de determinada divisão, de determinado departamento – e fazer com que tudo opere de forma transversal. Muitas coisas em determinada área vão ter impacto noutra e agora, através da capacidade de análise de informação, conseguimos otimizar muito este processo. Mas o grande desafio é a cultura organizacional – e essa questão vai ainda demorar algum tempo, e está – mais uma vez – ligada aos problemas anteriores. Sendo este processo tão complexo, em termos estratégicos e técnicos, diria que um planeamento cuidado representa um papel fulcral nestas iniciativas? Eu diria que, se o planeamento for demasiado cuidado, nada acontece da mesma forma. Uma das formas que temos de inovar é recorrendo a algumas estratégias relacionadas com o venture capital, o desenvolvimento de software, o modelo agile: experimentar muito, experimentar em pequena dimensão, para depois escalar. Temos a noção de que muitas destas provas de conceito falham. Mas isso vamos buscar ao venture capital: se em cada dez projetos falharem nove, aquele que fica compensa o investimento e recursos humanos de todos os outros – e isso tem acontecido. É mais fácil tentar fazer e experimentar de forma mais pequena possível, para que os resultados sejam a base da escalabilidadade. Isso será então integrado no processo de desenvolvimento e crescimento e na estratégia da própria Câmara. Para que a inovação seja eficaz, exista e seja interessante ela tem de, de facto, acontecer, independentemente do resto. Deixamos que, dentro da inovação, as pessoas possam experimentar, sem grandes preocupações a não ser os objetivos da prova de conceito. Focamo-nos num objetivo da experiência, e depois tentarmos perceber se é algo estrutural, se tem capacidade de crescimento, se tem capacidade de escala – ou não, e aí abandonamo-la. Isto é muito importante em qualquer organização, mas nós temos conseguido trazê-lo para a esfera do município, e isso é muito importante. Tudo isto fecha o ciclo do empreendedorismo – nós não conseguimos, sozinhos, gerar ideias e criatividade. Precisamos de pessoas de outras áreas com outras capacidades e experiências e todo este ciclo forma um ecossistema totalmente interligado. Estas pessoas vêm, influenciam-nos, vamos testando em conjunto, e no todo forma-se um sistema virtuoso que se autoalimenta.
"Tenho a certeza absoluta que o futuro tem um preço e esse preço vai ser a privacidade."
Quais são, para Cascais, os próximos passos? Acho que o grande desafio, do ponto de vista operacional, é muito claro: a qualidade dos serviços. Nós queremos fazer de Cascais o melhor lugar para viver – um dia ou para toda a vida – e isto não se consegue se não houver melhor qualidade dos serviços públicos. Em termos de inovação o foco é esse: respostas a horas, a tempo, seja do ponto de vista da mobilidade ou da manutenção ou do fornecimento, de qualquer produto ou serviço na área municipal. A chave é as pessoas saberem exatamente o que estão a receber e como é que o estão a receber. Do ponto de vista estratégico, há o tema da inteligência artificial, que vai influenciar muito a forma como o município se vai desenvolver – como qualquer município se vai desenvolver. Estamos a focar-nos muito nisso; sabemos que uma grande percentagem das decisões quotidianas da Câmara vão ser automatizadas, só temos de perceber quais e como. Mas, acima de tudo, temos de garantir que a comunidade pode decidir quanto é que pretende que essa automatização os vá beneficiar. Isto porque tenho a certeza absoluta de que o futuro tem um preço e esse preço vai ser a privacidade. A boa noticia é que não é uma inevitabilidade: nós podemos – e temos que – decidir qual é esse preço. Podemos aceitar uma perda de privacidade de 20% tanto quanto uma perda de 80%. Isso ainda está em aberto, mas ninguém vai decidir por nós; temos todos de decidir qual é o trade-off entre conforto e privacidade que queremos. Uma coisa é certa: vai haver perda de privacidade e a transparência no setor público vai aumentar exponencialmente. Temos é de ser capazes de trazer as pessoas para esta discussão, de tomar esta decisão e é perfeitamente possível haja em Cascais um modelo completamente diferente de, por exemplo, Lisboa. É uma questão de disponibilidade, de serviços e de dar às pessoas a opção entre conforto e privacidade. Este é o principal desafio estratégico que penso que vai ser sentido pelas cidades – para além, obviamente, do macro desafio do ambiente, que vai definir todos os próximos passos de todas as pessoas e organizações públicas e privadas nos próximos anos. |